domingo, 4 de março de 2018

O que faz o Brasil ter 190 línguas em perigo de extinção?


04/03/2018                                14:30



Leticia Mori 

Da BBC Brasil em São Paulo


Moradores da fronteira do Brasil com a Bolívia, o casal Känätsi, de 78 anos, e Híwa, de 76, são os dois últimos falantes ativos da língua warázu, do povo indígena Warazúkwe. 


Känätsi (à esq.) e Híwa falam entre si uma língua que só eles conhecem.






Os dois se expressam mal em castelhano e português, e conversam entre si somente e warázu, embora seus filhos e netos que moram com eles falem em português e espanhol.


"Aquela casa desperta, para quem entra nela, uma sensação incômoda de estranheza, como se o casal idoso que vive nela viesse de outro planeta, de um mundo que eles nunca poderão ressuscitar", escrevem os pesquisadores Henri Ramirez,Valdir Vegini, Maria Cristina Victorino de França em um estudo publicado na revista Liames, da Unicamp.

com ajuda do casal idoso, esses linguistas da Universidade Federal de Rondônia descreveram pela primeira (e possivelmente a última) vez o idioma do povo Warazúkwe. 

O casal nasceu em Riozinho, em Rondônia, mas a comunidade warazúk em que viviam foi abandonada nos anos 1960, forçando os dois a se mudar diversas vezes entre Brasil e Bolívia até se estabelecido em Pimenteiras (RO)

Segundo o estudo, além de Känätsi e Híwa, ainda haveria três pessoas que poderiam conhecer o idioma. Um deles, o irmão mais velho de Känätsi, sumiu há anos. Os outros dois, Mercedes e Carmelo, vivem na Bolívia, mas já não conversam mais em warázu.

"Parece que a 'vergonha étnica' que os warazúkwe experimentaram foi tão intensa que Mercedes não gosta de proferir palavra alguma no seu idioma e Carmelo afirma que esqueceu tudo", diz o estudo.

País multilíngue

 Da família linguística tupi-guarani, o warázu é apenas uma de dezenas de línguas brasileiras em perigo de extinção. Segundo o "Atlas das Línguas em Perigo da Unesco", são 190 idiomas em risco no Brasil.


O mapa reúne línguas em perigo no mundo todo --e o Brasil é o segundo país com mais idiomas que podem entrar em extinção, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Adauto Soares, coordenador do setor de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, explica que o mapa foi feito com a colaboração de pesquisadores especialistas em cada região e entidades governamentais e não governamentais.

No Brasil, as principais entidades que colaboraram foram o Iphan, a Funai, a Unaids e o Museu do Índio. 

Soares explica que foram usados diversos critérios para definir se uma língua está em risco. 

O número absoluto de falantes, a proporção dentro do total da população do pais, se há e como e como é feita a transmissão entre gerações, a atitude dos falantes em relação a língua,mudanças no domínio e uso da linguagem, tipo e qualidade da documentação, se ela é usada pela mídia, se há material para a educação e alfabetização no idioma. 

Känätsi (à esq.) e Híwa são os últimos falantes ativos da língua warazú.





"Esse quadro (de línguas em perigo) pode ser revertido, e é por isso que a gente atua", diz Soares. 

A morte de uma língua não é apenas uma questão de comunicação no dia a dia: a preservação da cultura de um povo depende da preservação do seu idioma.

"Se a língua se perde, se perde a medicina, a culinária, as histórias, o conhecimento tradicional. No idioma estão a questão da identidade, o conhecimento do bosque, do mato, dos bichos", explica o linguista Angel Corbera Mori, do instituo de estudos da linguagem, da Unicamp.

Mais ainda 

O número de idiomas em risco pode ser ainda maior do que o apontado pela Unesco, porque é possível que algumas línguas, que nunca foram estudadas, tenham ficado de fora --o warázu, por exemplo, não está incluso no mapa.

Além disso, é possível que existam dezenas de línguas em perigo em comunidades isoladas, que nunca foram descritas.

Estima-se que, antes da colonização portuguesa, existissem cerca de 1.100 línguas no Brasil, que foram desaparecendo ao longo dos séculos, segundo Corbera.

Ele explica que durante o período colonial, os jesuítas começam a usar o tupi como uma espécie de língua geral --o que foi visto pela Coroa portuguesa como uma ameaça. O tupi --e posteriormente outras línguas indígenas foram proibidos. E quem desobedecesse era castigado.


Os guajajara consideram a língua um aspecto importantíssimo para preservação de sua cultura






A perseguição continuou por séculos. Na era Vargas, por exemplo, o português era obrigatório nas escolas, e quem desrespeitasse também estava sujeito a punição.


"A situação só melhorou a partir da Constituição de 1988", diz Corbera.

Segundo ele, uma das principais ameaças à língua hoje é a invasão dos territórios indígenas. "Políticas de preservação e registro da língua são importantes, mas não adiantam nada se eles não têm território, se são expulsos de suas de suas terras". diz Corbera.

Alguns grupos que foram perseguidos têm o único registro escrito de suas línguas em trabalhos em naturalistas que visitam o país nos séculos passados. É o caso da língua dos povos do grupo Panará --nomeados pelos colonizadores de Caiapós do Sul do aldeamento de São José de Mossamédes,em Goiás no século 18.

A única descrição linguística dos povos que ocupavam essa aldeia é encontrada em listas de palavras dos europeus Emmanuel Pohl (1782-1834) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), como descreve o linguista Eduardo Alves Vasconcelos em um artigo publicado no ano passado.

Os últimos 

Uma das línguas que sobreviveram, ainda que em estado crítico, é o guató. O idioma tinha, em 2006, apenas cinco falantes, de acordo com a Unesco.

Os Guatô ocupavam praticamente toda a região sudoeste do Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia, até começaram a ser expulsos de suas terras entre 1940 e 1950, segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA), por causa do avanço da 
agropecuária.

O registro escrito é um dos fatores avaliados para definir se uma língua está em perigo




Chegaram a ser considerados extintos pelo governo, por isso foram excluídos de programas de ajuda e políticas públicas, até meados dos anos 1970, quando missionários identificaram índios Guatô e o grupo começou a se reorganizar e lutar por reconhecimento.

Há línguas tidas como vulneráveis --possuem um número maior de falantes, mas ainda são consideradas em perigo. É o caso da língua guajajara, falada por um dos povos mais numerosos.

Há mais de 27 mil guajajaras no Brasil, segundo o sistema de informações do Ministério da Saúde. O guajajara é usado como primeira língua em muitas aldeias, mas nem todos os índios Guajajara falam o idioma. A língua guajajara pertence a família tupi - guarani e é subdividida em (4) dialetos.

Extintas

 Das 190 línguas citadas pela Unesco, 12 já são consideradas extintas, ou seja, não têm mais nenhum falante vivo. Uma das que foram extintas mais recentemente foi língua dos Umutina, povo indígena que vive no Mato Grosso.

Quando o Museu do Índio iniciou um trabalho de documentação de línguas, em 2009, ela ainda tinha falantes. Hoje está extinta, segundo a Unesco.

Os Umutina tiveram seu território invadido violentamente no início do século passado, segundo o ISA. Por isso acabaram perdendo sua terra tradicional e sua língua, que era do tronco linguístico Macro-Jê, da família Bororo.

Além disso, centenas de umutinas morreram devido a doenças levadas pelos brancos.

Os que sobreviveram às epidemias tiveram contato com o antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai extinto em 1967). Eles foram educados em uma escola para índios que os proibia de falarem sua língua materna e de prataicar qualquer tipo de atividade relacionada a sua cultura, segundo o ISA.

Hoje são 515 pessoas, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que falam predominantemente português e tentam recuperar a língua com ajuda de idosos e universitários indígenas. Segundo Corbera, omuitas vezes não se consegue recuperar a lingua toda,ás vezes só o léxico.

"Mas é muito importante, até por questões de identidade", conta ele.







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