terça-feira, 27 de março de 2018

Rapper Kunumi canta pelos direitos indígenas: 'Vivo uma guerra diária'



27/03/2018                         16:30


MC de 17 anos que faz versos de protesto em português e tupi e tem ganhado fama no YouTube. Ele cuida da carreira sem abandonar os costumes da tribo



  • Daniel Vaughan, do R7



Kunumi MC usa o rap como forma de protesto indígena

Edu Garcia/R7
Kunumi MC canta rap para reivindicar direitos indígenas. Prestes a lançar seu segundo disco em 19 de abril, data escolhida justamente por ser quando é comemorado o Dia do Índio, o jovem de 17 anos canta versos de protesto, tanto em português como na língua nativa.
Apesar de ainda não ser conhecido pelo grande público, Kunumi já conquistou até o experiente Criolo, que gravou um dueto com ele.



Werá Jeguaka Mirim, nome verdadeiro do cantor, é de origem guarani. Ele nasceu e vive até hoje na aldeia Krukutu, com cerca de 350 moradores, na região de Parelheiros, extremo sul da capital paulista.
Para conversar pessoalmente com o rapper no ambiente em que vive, a equipe do R7 seguiu por 45 quilômetros em quase três horas, a partir da Barra Funda, na região oeste, entre caminhos de asfalto, terra e mata atlântica.

O terreno onde está a aldeira, com 25 hequitares, fica perto de uma barragem na represa Billings.
Kunumi nos recebeu no quintal da sua área, onde a família se divide em cinco casas simples de pau a pique, montadas com madeira cortada no mato local sobre um chão de terra batida.

Da timidez à atitude 

Ele chega simpático, de jeito tímido e fala mansa. O jovem veste uma camiseta amarela surrada, calça de moletom e chinelos. Nem parece o cantor dos clipes divulgados no canal no YouTube.

Mas, na hora de gravar nosso vídeo, o garoto vira MC: ajusta o cocar na cabeça e caminha descalço pela mata, empunhando arco e flecha. O olhar inocente também muda. Agora, ele faz todo o gestual de rapper, cruzando os braços e encarando firme a câmera.

Kunumi posa orgulhoso com a família em casa, na aldeia Krukutu

Edu Garcia/R7
Kunumi não é o único que curte o ritmo norte-americano por ali. O irmão, Tupã, de 18 anos, observa tudo atentamente. Ele exibe um piercing azul moderno no nariz e fuma um cachimbo todo estilizado. Orgulhoso, ele conta que está fazendo um curso de DJ.

Já a mulher de Kunumi, Kamila Mirim, de 20 anos, se aproxima aos poucos, segurando carinhosamente no colo o filho de 1 ano do casal. O cantor explica que se casou aos 14 anos.
"Ao contrário de vocês [homens brancos], a gente começa certas tradições bem cedo", diz. "Mas somos seres humanos e devemos respeitar as culturas e religiões de cada um."

Espaços sagrados

 

Kunumi informa que a entrevista será feita em seu jardim, pois, fora dali, existem lugares sagrados na aldeira para os indígenas que não poderiam ser filmados ou fotografados.

Em um canto mais reservado da tribo, existe uma casa chamada Opy, onde eles cantam e dançam para o deus Nhamderu. Os moradores também recebem conselhos e tratamentos do curandeiro no local.
Mas o contato com os não-indígenas também faz parte do dia a dia. Em casa, além do guarani, a população aprende o português logo cedo. Para estudar, os moradores dependem de um ônibus escolar para levá-los para o colégio estadual mais próximo. Eles completam o ensino médio em aulas na aldeia vizinha.

Porém, quem não tem um meio de transporte próprio, faz idas e vindas para o centro comercial na base de caronas ou descendo quilômetros a pé.



Nas horas de folga, o pessoal costuma pescar e nadar na represa.
Sentamos em duas cadeiras ao ar livre, entre pássaros cantando e o pequeno sobrinho de Kunumi, de rosto pintado de forma tribal, brincando na rede.

Primeiro, o jovem faz questão de registrar que descobriu o amor pela escrita através do pai, Olívio Jekupe, de 52 anos.

O escritor tem 17 livros publicados e, não só apoia o filho, como cuida da carreira do pupilo.
"A poesia do meu pai foi importante na minha vida. Eu li os textos dele, que falam de direitos indígenas, daí gostei tanto daquilo que comecei a compor canções com o mesmo tema", diz Kunumi.

"Acabei notando que minhas rimas eram idênticas ao rap, que traz uma forma quase falada de cantar. E pensei que esse estilo poderia me ajudar a levar nossa mensagem ao mundo todo."
"Muitas pessoas nos criticam sem saber o que estamos passando ou como são nossas tradições"
Foi assim que surgiram dois livros e músicas como Nunca Desistir, Justiça e Tentando Demarcar.
"Os contos são dedicados ao meu povo e aos não-indígenas. De um lado, procuro resgatar algo para aqueles que estão esquecendo sua essência, pois isso é muito triste.

E tem a denúncia, onde levo uma mensagem para todos, informando a verdade sobre a vida na aldeia", discursa Kunumi. "Muitas pessoas nos criticam sem saber o que estamos passando ou como são nossas tradições."

Protesto na copa

 


Em uma festa da Copa 2014, Kunumi surpreendeu com uma faixa pedindo demarcação de terras

Reprodução/YouTube
Não é de hoje que o jovem luta pela causa indígena. Ele foi convidado para um evento sobre a Copa do Mundo de 2014, antes do jogo entre Brasil e Croácia, realizado em São Paulo, na Arena Corinthians. No dia, o então garoto de 13 anos entrou em campo com uma faixa escondida dentro do calção. A frase da bandeira, que foi planejada pelos líderes da aldeia, alertava: "Demarcação Já!".
"A TV brasileira tentou encobrir parte das imagens, mas isso foi parar na internet e os estrangeiros quiseram saber mais sobre o assunto.

Jornalistas de fora do país vieram na aldeia para entrevistar os adultos, pois eu mesmo ainda era muito novo e sabia pouco sobre o assunto", relembra. "Valeu a pena."
"Conheci indígenas que tiveram os corpos feridos e até mãos amputadas por fazendeiros"
Nesse meio tempo, Werá se transformou em Kunumi — uma derivação de "curumim" (criança, em Tupi-Guarani). Em uma das visitas de gringos à aldeia, o talento do cantor chamou a atenção do britânico Cris Longham, da Need Must Films, que produziu seu álbum de estreia, em 2017.

O trabalho independente, My Blood is Red (meu sangue é vermelho), está disponível nas plataformas digitais e traz músicas cantadas em português e guarani. Já o título em inglês, segundo ele, faz parte da estratégia criada pelo produtor para chamar a atenção mundial. Apoiado por amigos e incentivadores, Kunumi também gravou clipes que fazem sucesso no YouTube. 

Kunumi faz música e escreve livros

Edu Garcia/R7
Porém, apesar da boa intenção, Kunumi confessa que a ideia de virar rapper não foi tão bem aceita pela ala mais radical dos indígenas.
"Muitos deles não gostaram quando me viram cantando porque achavam que era uma perda da cultura", diz. "Só que eles têm que entender que estou usando isso para passar uma mensagem para os 'brancos'. Isso dá visibilidade mundial para pedirmos ajuda com nossos problemas."

Luta contra o homem branco

 


Kunumi se mantém entre a tradição e a modernidade

Edu Garcia/R7
Fazendo música e acompanhando o pai em palestras, ele visitou outras aldeias brasileiras, onde viu cenas espantosas que o deixaram transtornado. "No Maranhão, eu conheci indígenas que tiveram os corpos feridos e até mãos amputadas por fazendeiros."
Experiências terríveis como essa só deixam Kunumi mais empenhado em desafiar o coronelismo ainda vigente de certas regiões do país.
"Lutamos desde 1500 pelos nossos direitos. Precisamos da lei a nosso favor e da demarcação urgente de terras para viver em paz na natureza. E não queremos criar fazendas por puro lucro.

A ideia do indígena é preservar o verde e seguir nossas tradições", diz. "Mas, de geração em geração, encaramos uma guerra diária contra o preconceito, debatendo com empresários ruralistas que só pensam em lucrar tomando nossas áreas. Como MC e escritor, vou seguir em frente levando a mensagem."

Parceria com Criolo



Kunumi empolga seus fãs ao vivo

Arquivo pessoal/Kunumi MC
Aos poucos, a música de protesto do jovem vai chegando aos ouvidos de artistas famosos. Criolo fez um dueto com ele em Terra, Ar, Mar (ouça abaixo). "Quando ele me conheceu pessoalmente, ficou surpreso por existir um indígena rapper em São Paulo. Foi emocionante gravar com ele", diz Kunumi.
Em um clipe que mostra o encontro dos dois, Criolo aparece emocionado fazendo elogios ao cantor. "Ele vem de uma pureza do Brasil... representa o original da terra, antes de alguém ter dado o nome de Brasil", diz Criolo.
Kunumi é o primeiro artista indígena solo de rap — antes dele já existia o grupo Brô MC's. A banda do Mato Grosso é uma das grandes inspirações do artista, assim como Sabotage, MC Guimê e Racionais MC's, que ele ouve pelo celular e via internet na aldeia.
"A ideia do indígena é preservar o verde e seguir nossas tradições"
Do outro lado, o pai Olívio dá conselhos importantes sobre fama para o filho, dizendo que é importante manter o pé no chão. Essa é uma das razões dos shows do cantor serem esporádicos.
"Eu mesmo, como escritor e palestrante, não faço questão de buscar tanta fama e, assim, ficar preso em um sistema viajando a todo momento, ficando longe da família. Então, passo esse exemplo para ele", diz Olívio. "Mesmo com sucesso, dá para viver com o mínimo de dinheiro e ainda manter nossas tradições."
Este ano, Kunumi promete surpreender com um novo disco. Todo dia era dia de Índio será disponibilizado nas plataformas digitais em 19 de abril. O título do trabalho é uma referência à composição crítica que ficou famosa na voz de Baby do Brasil. "Eu quero que ela participe da música, mas ainda estamos esperando uma resposta."
"Devemos nos informar para não sermos passados para trás. Chega de injustiça"
E, além da carreira musical e literária, Kunumi ainda quer ir mais longe.
"Além de cantar e escrever histórias, eu tenho vontade de conhecer mais sobre o universo, os planetas. Quero me formar em astronomia", diz.

"E existe a astrologia indígena, que é muito bacana. Também é bom lembrar que nossas cotas escolares são importantes, mas não sei se o governo atual está interessado nisso", discursa, deixando claro que as demandas indígenas — e as demandas de Kumuni — são diversas.
"Devemos nos informar até mesmo para não sermos passados para trás", conclui. "Chega de injustiça."


Fonte: Portal r7

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