06/12/2014 10:00
Elverson Cardozo
(Foto: André Maganha)
No cinema, acompanhada da mãe, Kariane, hoje com 11 anos, se emocionou. |
No cinema, acompanhada da mãe, Kariane, hoje com 11 anos, se emocionou. (Foto: André Maganha)
Kariane Martines, uma indiazinha Guarani Kaiowa de 11 anos, nascida e criada da Aldeia Amambai, no interior de Mato Grosso do Sul, é uma menina de poucas palavras.
Pelo menos é essa a impressão que passa ao telefone.
Do outro lado da linha, falando com um completo desconhecido, que se apresenta apenas como Elvis, repórter do Lado B, a garota diz poucas coisas. Com a jornalista e cineasta Jamile Fortunato, que fez um filme com ela há dois anos, o contato, ao que tudo indica, é bem diferente.
Também pudera.
Jamile estabeleceu uma relação de amizade, de confiança com Kariane. Mas isso não aconteceu em 15 minutos, a distância, por telefone, como eu fiz para escrever essa matéria.
Ela visitou a casa da menina, esteve com ela, almoçou com a família, se apropriou da história e, de posse de um celular e de uma handycam, aquelas filmadoras compactas, registrou, com toda a sensibilidade, o mundo encantado da garota.
É um universo imaginário, construído a partir de uma realidade dura, triste, que muitos, por ignorância ou maldade, teimam em fechar os olhos. O material, mais tarde, virou um curta-metragem, o “Cordilheira de Amora II”.
O filme foi um dos selecionados para integrar a programação do Fest Cine América do Sul, festival que reúne, em Campo Grande, até o dia 7 de dezembro, outras produções brasileiras e, também, de origem sulamericana.
Menina cria um mundo imaginário e, assim, consegue fugir da realidade em que vive. (Foto: Reprodução/Cordilheira de Amora II) |
Menina cria um mundo imaginário e, assim, consegue fugir da realidade em que vive. (Foto: Reprodução/Cordilheira de Amora II)
Kariane, a personagem principal desta obra, viajou mais de 360 quilômetros para assistir à exibição na Capital, dentro de um shopping, junto com a mãe, a professora de educação infantil Sônia Martines Vera, de 43 anos.
Teaser Cordilheira de Amora II - de Jamille Fortunato
“Nunca imaginei que iria chegar lá, naquela tela grande”, revelou, com voz baixa. Pergunto sobre o filme e se ela é, realmente, uma menina sonhadora. “Eu sou. Imagino que tudo isso um dia vai virar realidade”. A indiazinha espera que a fantasia vire realidade, até porque o mundo imaginário que pinta, e que Jamile Fortunato retratou com primor, é bem mais colorido.
Na época em que ocorreu a gravação, a cineasta frequentava a aldeia para ensinar, entre outras coisas, como fazer cinema com o celular. Primeiro conheceu a irmã de Kariane, que era uma das participantes do projeto. Por intermédio dela é que foi apresentada à menina.
A oportunidade de gravar um filme com a garota surgiu por acaso.
Foi no “susto”, depois de um almoço junto com a família. “Na hora de ir embora, com o carro já esperando, eu avistei uns tijolinhos entre as bananeiras e perguntei o que era aquilo. Ela [Sônia] me respondeu que era lixo e que a filha juntava para brincar”.
Parte da casa de tijolos. (Foto: Reprodução/Cordilheira de Amora II) |
Era mais que lixo. Era a “casa própria” de Kariane, como ela mesma faz questão de dizer. No filme, a imagem que se tem é a de um amontoado de tijolos, mas a menina teve o cuidado de separar as peças, empilhar outras e formar alguns ambientes, como cozinha e sala, com uma caixa de sabão em pó para representar a televisão que não tinha.
No meio das bananeiras, fez a “biblioteca”. Os livros são, na verdade, revistinhas de cosméticos descartadas. Em uma cena, ela apresenta as obras que imagina ter: Chapeuzinho Vermelho e os Três Porquinhos.
Em outra, logo no início, mostra um pedaço velho de madeira e explica que se trata de um porta-retrato, onde, de um lado, aparece com a colega da escola, com vizinha e o amigo invisível.
Atrás, explica, tem toda a família.
Kariane também imagina um shopping no quintal, mas o espaço está longe de ser glamouroso. É um amontoado de lixo. O que ela enxerga, no entanto, é bem diferente. “Aqui tem cabeleireiro, loja, comida, doces, tem champagne... meu, meu... Shopping”, conta.
Por fim, apresenta a “floresta”, que chama, carinhosamente, de “Cordilheira de Amora”. Vem daí o nome do curta. Não podia ser diferente.
O shopping de Kariane. (Foto: Reprodução/Cordilheira de Amora II) |
O filme foi gravado quando Kariane tinha 8 anos. Até então ela só tinha assistido uma versão pequena, de cinco minutos. A maior, de 12, foi vista do cinema.
“Eu estava preocupada, ansiosa, pensando se ela iria gostar ou não, mas assim que apareceu a primeira imagem ela desmoronou”, conta Jamile.
A mãe, toda animada, relata a mesma coisa. “Ela se emocionou muito. Poxa vida, chorou de alegria. Foi uma surpresa. Não tenho palavras para agradecer”. Na aldeia, completa, a menina virou estrela. “Os irmãos ficaram curiosos. Ela chegou aqui e já encheram ela de perguntas.
Ninguém viu aqui ainda”.
Jamile fala em “documentário espontâneo”, porque nada foi planejado e tudo foi feito em um dia. Sônia traduz do jeito dela: “Ela não representou nada. A história é verdadeira”. A história é verdadeira e a realidade dura demais, mas Kariane é uma sonhadora de mão cheia.
A garota diz que, do futuro, esperara muitas e que ainda vai vencer muitas batalhas, mas o principal sonho é, sem dúvida, ser atriz.
Ela quer ganhar o mundo, mas de uma coisa tem certeza: “Nunca vou esquecer da minha aldeia, mesmo que saia daqui”.
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