Imprimir esta página
09/07/2014 09:20
Bruno Paes Manso
Estadão
Entre os
mais de 5 mil municípios brasileiros, a cidade de São Gabriel da
Cachoeira, no noroeste da Amazônia, ficou na primeira posição do
ranking brasileiro de suicídios. Fiquei surpreso por dois
motivos. Primeiro, porque em 1998 estive nesse lugar inesquecível,
cortado pelo Rio Negro e no meio da Floresta Amazônica. Mas a razão
principal do espanto é que a população [...]
Entre os mais de 5 mil municípios brasileiros, a cidade de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste da Amazônia, ficou na primeira posição do ranking
brasileiro de suicídios. Fiquei surpreso por dois motivos. Primeiro,
porque em 1998 estive nesse lugar inesquecível, cortado pelo Rio Negro
e no meio da Floresta Amazônica. Mas a razão principal do espanto é que
a população de São Gabriel é quase toda indígena.
Os novos dados do Mapa da Violência 2014 revelam
que, entre 2008 e 2012, a taxa de suicídios na cidade foi de 50 casos
por 100 mil habitantes, dez vezes maior do que a média brasileira.
Entre os que se mataram, 93% eram índios. Oito entre dez se enforcaram.
O suicídio por ingestão de timbó, raiz venenosa que causa sufocamento, foi o segundo método mais usado.
Além de São Gabriel da Cachoeira, outras cidades com assentamentos
indígenas estão nas primeiras posições da lista dos suicídios, como São
Paulo de Olivença e Tabatinga, no Amazonas, Amambai, Dourados e
Paranhos, no Mato Grosso do Sul.
Nos últimos dez anos, entre 2002 e 2012, o Amazonas foi o
estado onde o suicídio de jovens mais cresceu (134%). Lá, onde os
índios representam 4,9% da população, 20,9% dos suicídios foram
praticados indígenas, número quatro vezes maior que o esperado. A
situação é parecida no Mato Grosso do Sul, onde a proporção de índios
entre os que se mataram é sete vezes maior do que a fatia deles na
população.
Em 2012, a ameaça de morte coletiva dos Guarani Kaiowá
sul-mato-grossenses causou comoção nacional. É como se o processo,
entre diversas etnias de distintas cidades, fosse ocorrendo agora em
conta gotas.
Em época de Copa, o primeiro lugar de São Gabriel da Cachoeira no
ranking dos suicídios não repercutiu nada nos jornais, internet e nas
redes sociais. Acho necessário nos informarmos a respeito. Creio
que esse fenômeno é semelhante, em alguma medida, ao que vivemos como
nação nos últimos 500 anos. Ainda buscamos ser algo que não somos,
negando nossas origens sem sequer compreendê-las. Essa crise de
identidade, a meu ver, nos faz mais violentos.
São Gabriel da Cachoeira é a maior cidade do Brasil em extensão
territorial, cem vezes maior que o município do Rio de Janeiro. No
centrinho da cidade fica metade dos 30 mil habitantes, que começaram a
chegar das zonas rurais e das aldeias principalmente depois dos anos
1990. Situação que vem provocando certo desconforto cultural e urbano
típico das migrações intensas.
A outra metade da população se divide em
750 povoados e aldeias. Do ponto mais distante de São Gabriel, leva-se
até 12 dias de canoa pelo Rio Negro para se chegar ao centro.
Tudo nessa cidade é surpreendente, ainda mais para um jornalista
urbano que aterrissou por lá aos 20 e poucos anos de idade.
O município é um dos raros no Brasil com mais de uma língua oficial:
português, nheengatu, baniwa e tukano. Conheci em São Gabriel um padre
indígena, que usava batina, cocar (foto) e fazia paralelos inteligentes
entre a cultura indígena e o cristianismo (As fotos foram tiradas por
Ricardo Stuckert). “Jesus dizia que devemos doar ao próximo. Essa
pregação comunitária tem muito a ver com a cultura indígena. Mais do
que com a sua. Comparo os índios aos judeus, que durante anos lutaram
pela terra prometida”, ele me disse.
O exército era formado por índios, os mais aptos a se embrenhar pelo
mato e vigiar as fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Colômbia.
As
escolas decretavam feriado no Dia da Formiga. Nos hospitais, havia
pajés que trabalhavam com médicos para enfrentar a tuberculose. Fui a
uma aldeia Yanomami e aspirei paricá, tipo forte de rapé que me foi
soprado nas narinas pelo cacique (que está me pintando na foto abaixo).
Era uma substância usada para rituais religiosos. O pajé (sozinho na
segunda foto), que não falava português, ficou me olhando como se
estivesse curioso para saber o efeito que o paricá exercia sobre mim.
O
índio fazia o papel de antropólogo, observando aquele jornalista
deslumbrado no meio de sua aldeia. Tentei usar alguns gestos
para lhe explicar o que eu estava sentindo. Acho que o pajé não
entendeu, mas imitou meus gestos e acabamos dançando juntos no terrão
da aldeia. Depois, todo pintado de vermelho e embaixo do sol quente, eu
pulei no rio. Tinha um monte de indiozinhos em volta.
Minha matéria ficou entre ingênua e otimista. Fiquei em São
Gabriel uma semana. Na Revista Veja (que em 1998 era muito diferente da
de hoje, acredite…), eu descreveria uma cidade que parecia a caminho de
encontrar, com sucesso, uma fórmula para misturar as visões de mundo
indígena com a ocidental.
Prefeitura, bicicleta, carro, televisão, em
meio a um cotidiano mais integrado à natureza, onde os seres humanos
são apenas mais uma das espécies na terra, assim como os bichos e as
plantas. A crença na lenda da serpente criadora de todas as aldeias do
Rio Negro. Espíritos, curumins, urucum, o Rio Negro, gentileza. Escrevi
com a alegria de quem conheceu os índios mais de perto, em plena
Floresta Amazônia.
Só que a realidade não costuma ser tão romântica quanto nossas
projeções. Claro que tudo é muito mais complicado e difícil. As taxas
elevadas de suicídio entre jovens indígenas são um dos principais
sintomas dessa crise. No centro de São Gabriel, a cultura rural dos
índios foi muitas vezes menosprezada e ridicularizada, já que
desvinculada dos valores universais do crédito e do consumo levado a
todos pela televisão e internet.
Traçando um paralelo, me parece algo
parecido com a crise de identidade nas periferias de São Paulo nos anos
1970 e 1980, quando as novas gerações urbanas negaram e ridicularizaram
a cultura rural dos antepassados nordestinos e migrantes.
Na cidade de São Gabriel, as mulheres diziam preferir homens que não
eram indígenas, como apontam investigações que tentaram entender essa
epidemia. Muitos dos pais, ao casar seus filhos, se negavam a dar o
nome indígena aos netos. Para as etnias do Rio Negro, o nome familiar
está ligado à alma do indivíduo e existem aspectos sagrados que acabam
se perdendo.
A morte também é vista de forma diferente pelos índios, o
que talvez contribua para essa escolha suicida.
Eu não tenho a pretensão nem a capacidade de
apresentar respostas para esse triste fato. Mas acho
fundamental levantarmos essa pergunta: por que os índios estão se
matando em taxas tão elevadas? O debate é uma oportunidade para
pensarmos também sobre o Brasil e nossa identidade errática, ainda em
processo de construção.
Ok, posso até ser piegas, mas nada melhor do que um vídeo para
encerrar a matéria. Música cantada por Maria Bethânia no
documentário Doces Bárbaros, antecedida por uma bela entrevista em que
as perguntas e o tom do repórter se parecem com Gregório Duvivier em um
vídeo do Porta dos Fundos.
A linda letra de Caetano é inspirada nos
mergulhos antropofágicos dos modernistas, fonte constante de inspiração
do poeta e cantor baiano. Como eles, também acredito que saber quem
somos é mais importante do que saber quem devemos ser.
Oswald de Andrade, Darci Ribeiro, Gilberto Freire, Viveiros de
Castro, para citar alguns, podem nos orientar na busca por
essas respostas. Aqui vai uma pista sobre como os índios veem o mundo:
“O chocalho do xamã é um acelerador de partículas”, como nos explica
Viveiros de Castro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário